“A Acusação” é um espetáculo
teatral multimeios que se propõe a contar a história de
Josef K., um personagem anônimo que de repente se vê acusado
e envolvido nas tramas de uma justiça sem rosto por motivos que
ele mesmo desconhece.
O espetáculo integra dança e movimentos
cênicos à ação dos atores, que manipulam
bonecos e circulam por um cenário móvel, composto de portas,
escadas, adereços cênicos e estruturas metálicas
que nos remetem à verticalidade da arquitetura urbana, desvendando
as tentativas de Josef K. para se ver livre da burocracia judicial.
A música eletrônica inspirada em temas de
Bernard Herrmann (dos filmes de Hitchcock) nos remete a um clima de
suspense e inquietação.
Nesta encenação os atores falam, gritam, sobem e descem
escadas, saltam das alturas, correm por passarelas, escorregam em rampas
reforçando a situação de Josef K, um personagem
atônito e sujeito a uma contínua perseguição.
A Acusação
O
Grupo Oficcina Multimédia estreou Belo Horizonte sua nova montagem
– A ACUSAÇÃO, uma livre adaptação
de O Processo, de Franz Kafka, com direção de Ione de
Medeiros. Esse espetáculo alterna diferentes linguagens artísticas
em uma encenação multimeios, que reúne atores,
dança, material cênico, texto, e, ainda, mantém
a permanente proposta do Grupo de integrar as artes. A ACUSAÇÃO
pretende revelar um mundo regido pela papelada viva da burocracia e
pelas leis que vigiam uns e são ineficazes para outros. Em algumas
Em 1984, a Oficcina Multimédia produziu o espetáculo "K",
montagem que levou para a cena música ao vivo, adereços
circenses, trapézio e pernas de pau para dividir com o público
a temática da repressão, passando por vários contos
de Kafka.
Em 2005, com a montagem de A Acusação, o grupo retoma
a obra deste autor e busca em O Processo a base para contar a história
de Josef K, um homem comum que, detido injustamente, vê-se de
um dia para o outro engolido por uma engrenagem judicial arbitrária
e inverossímil.
No espetáculo atual, as cenas se desenvolvem em um cenário
que reflete a arquitetura de uma paisagem urbana, com linhas verticais
e longas diagonais, vias de acesso aos “box contemporâneos”
– habitações miniaturizadas – que enfatizam
a verticalidade típica das grandes metrópoles. Em algumas
cenas, bonecos interagem com os atores, para representar a manipulação
das pessoas pelo sistema.
Segundo Ione de Medeiros, este complexo de formas que
se entrecruzam em múltiplas combinações, é
constituído por uma série de estruturas metálicas,
presentes nos cubos superpostos, nas passarelas suspensas, nas escadas,
nos cabos de aço, nas roldanas, cujas proporções
agigantadas com o objetivo de evidenciar a supremacia da matéria
e o achatamento do indivíduo dentro da atual engrenagem social.
“Enquanto os atores manipulam e transitam pelo cenário
com sua profusão de escadas, altas passarelas e rampas escorregadiças,subindo
e descendo, ou correndo de um lado para o outro, desmantela-se a máquina
repressora, latente nos diversos segmentos de nossa estrutura social.
Nosso objetivo também é inserir na cena um caráter
lúdico e divertido, contrapondo à sisudez da burocracia
e às tensões dos corredores judiciais diante dos quais
somos todos impotentes”, comenta Ione de Medeiros.
A diretora lembra que para assimilar Kafka, não bastam as cenas
nem as palavras. O espectador tem que se desprender da realidade “morna”
e se deixar levar por um certo clima que situa a ineficácia da
Justiça e a burocracia exagerda presentes no dia a dia, objetos
kafkianos típicos. “O público tem que se deixar
envolver por esse universo”, recomenta Ione.
Estréia Nacional – A ACUSAÇÃO fez sua estréia
nacional no 3º Festival do Teatro Brasileiro – Cena Mineira,
realizado no mês de setembro de 2005 em Brasília/DF, no
Teatro Nacional.
O espetáculo conta com o importante trabalho do DJ paulista,
Paulo Beto da ANVIL FX que se inspirou em Bernard Herrmann( foi quem
fez a trilha dos filmes de Hitchcock )para criar os climas densos da
narrativa e do discurso, e um certo humor sarcástico, característicos
das obras do autor. A música acompanha o personagem no seu discurso
dramático, e reforça a melancolia de um condenado sem
nenhuma chance de se salvar.
A iluminação de Davi Brito (com assistência de Richard
Zaira e Joana D’Arc) também atua dramaticamente enfatiza
as sombras, promove deformações, amplia figuras, adensa
volumes e multiplica formas que reforçando o caráter ilusionista
da encenação.
"Não
pude lê-lo (Kafka), o espírito humano não é
suficientemente complicado para compreendê-lo"
Albert
Einstein
"Kafka
é o maior escritor clássico deste tumultuado e estranho
século."
Jorge
Luis Borges
Franz
Kafka nasceu a 3 de julho de 1883 na cidade de
Praga, Boêmia, então pertencente ao Império Austro-Húngaro
(hoje Republica Tcheca). Era o filho mais velho de um casal de comerciantes
judeus. Formou-se em direito na antiga universidade alemã em
1906, trabalhou como advogado, a princípio na companhia particular
Assicurazioni Generali e depois no semi-estatal Instituto de Seguros
contra Acidentes do Trabalho. Ele foi marcado por uma série de
fatos íntimos, observados na biografia que Max Brod escreveu
sobre o autor: os desentendimentos com o pai, a solidão, os estudos
de Direito, as horas no escritório, a profusão de manuscritos,
a tuberculose.
Alternando temporadas em sanatórios
com o trabalho burocrático, nunca deixou de escrever. Publicou
pouco, e embora já no fim da vida tenha pedido ao amigo Max Brod
que queimasse os seus escritos, não foi atendido, e foi através
dele que sua obra chegou até nós.
Viveu praticamente a vida inteira em Praga,
exceção feita ao período final (novembro de 1923
a março de 1924) passado em Berlim, onde ficou longe da presença
esmagadora do pai, que não reconhecia a legitimidade da sua carreira
de escritor.
A maior parte de sua obra - contos, novelas,
romances, cartas e diários, todos os escritos em alemão
- foi publicada postumamente. Falecido no sanatório de Kierling,
perto de Viena, Áustria, no dia 3 de junho de 1924, um mês
antes de completar 41 anos de idade e, quase desconhecido em vida, o
autor de O Processo, O Castelo, A Metamorfose e outras obras primas
da prosa universal, é considerado hoje - ao lado de Proust e
Joyce - um dos maiores escritores do século.
Kafka também conseguiu formalizar uma obra literária que
abriga leituras totalmente relacionadas com a condição
do ser humano moderno.
Suas obras criticam coisas como a opressão burocrática
das instituições, a arbitrariedade da "justiça"
e a fragilidade do homem comum frente a problemas insolúveis,
gigantescos, e que permeiam a realidade do ser humano moderno.
(Modesto Carone)
Cronologia:
1883 - 3 de
Julho - Nascimento de Franz Kafka, em Praga.
1893 a 1901 -
Escola comunal e Liceu alemão de Praga.
1901 - Inicio dos estudos de Direito na
Universidade Alemã de Praga.
1903 - Inicio da amizade com Max Brod.
1906 - Estágio no escritório
do advogado Richard Lowy, em Praga.
8
de junho - Doutorando em Direito.
1
de outubro - Estágio no Tribunal Correcional de Praga.
1907 - Emprego na Companhia de Seguros
"Assicurazione Generali"
1908 - Emprego na Companhia de Seguros
Operários.
1909 - Publicação de parte
da "Descrição de um Combate", na revista Hyperion.
1910 - Início do Diário.
outubro
- Viagem a Paris, com Brod.
1911 - Contato com grupos teatrais judeus
sob a direção de Lowy.
1912 - Início de "Amerika"
agosto
- Conhecimento de Felice Bauer
setembro
- "A Sentença".
1913 - Publicação de "Contemplação"
- "A Metamorfose".
1914 - maio - Noivado com Felice Bauer
julho
- Rompimento do noivado.
agosto
- Declaração da 1ª Grande Guerra - escreve "O
Processo" e "A Colônia Penal".
1915 - Reconciliação com
Felice Bauer.
outubro
- Prêmio Fontane de Literatura.
1916 - Faz menção a várias
novelas.
1917 - julho - Segundo noivado com Felice
Bauer - Escreve "Aforismos."
agosto
- Primeira hemoptise.
dezembro
- Ruptura definitiva com Felice Bauer.
1918 - "Médico Rural",
"Muralha da China".
1919 - Publicação de "Médico
Rural" - Escreve a "Carta ao Pai" - Publicação
de " A Colônia Penal".
1920 - Início da correspondência
com Milena Jesenská - Pollaková.
1921 - Início de "O Castelo".
1923 - Rompimento com Milena.
setembro
- Uni-se a Dora Dymant em Berlim.
Estudos
de Hebreu - escreve "Josefina", "A Toca", "Investigações
de um Cão" e "O Artista da Fome".
1924 - março - Estado crítico
de saúde, regresso a Praga. - Clínica Professor Hajek
em Viena.
abril
- Sanatório de Kierling - últimos retoques em "O
Artista da Fome". - Resposta negativa sobre o casamento, do pai
de Dora.
3
de junho - Agonia e morte.
FRAGMENTOS DE ALGUNS CONTOS DE KAFKA
A SENTENÇA
“... pensava no amigo que fugira para a Rússia
a alguns anos passados por sentir-se insatisfeito com as perspectivas
em seu país. Desta forma ele consumia-se inutilmente num país
estrangeiro, e aquela barba esquisita que passara a usar não
ocultava as afeições que Georg conhecia tão bem
desde a infância, e sua tez tornara-se tão amarelada, fazendo
suspeitar a existência de qualquer doença ainda não
declarada.
... talvez durante a vida de sua mãe, a insistência
de seu pai em dirigir os negócios ao seu modo, evitara que ele
desenvolvesse uma iniciativa própria...
... e foi assim que por três vezes e em três
cartas escritas num intervalo de tempo bastante longo, falara ao amigo
sobre o noivado de um homem sem importância, com uma jovem também
insignificante, até que bem ao contrário do que imaginara
ele começava a mostrar-se interessado neste acontecimento insigne.
... talvez até me invejasse e certamente sentir-se
ia desgostoso, e não podendo fazer nada para aliviar este sentimento
teria que partir sozinho mais uma vez.
Sozinho... sabe o que isto significa?
... entretanto, seja como for, faça apenas o que
melhor lhe aprouver, sem pensar nos meus interesses mas unicamente nos
seus.”
Trad: Syomara Cajado
AS PREOCUPAÇÕES
DE UM CHEFE DE FAMÍLIA - ODRADEK
“Evidentemente ninguém se dedicaria a tais
estudos se não houvesse uma coisa chamada Odradek.
A peça inteira parece ser um tanto irracional,
mas a seu modo perfeitamente bem acabada. Seja como for, uma observação
mais minuciosa não é possível, uma vez que Odradek
é incrivelmente ágil, não se conseguindo agarrá-lo.
...ele é tão minúsculo que não
se pode evitar tratá-lo antes como uma criança.
- Como se chama? – pergunta-lhe.
- Odradek.
- E onde mora?
- Não tenho moradia fixa – responde e ri; (...) E a conversa
geralmente termina aí. Até mesmo as respostas nem sempre
são obtidas.
Ver-me-ei então forçado a imaginar que sempre
estará rolando pelas escadas, com pedaços de fios arrastando-se
por trás dele, bem em frente aos pés dos meus filhos,
e dos filhos de meus filhos?”
Trad: Syomara Cajado
O TRAPEZISTA
Primeiras Atribulações:
“...Nosso trapezista organizara sua vida de tal
forma que enquanto trabalhando no mesmo local, nunca descia de seu trapézio
quer de dia ou de noite.
Uma vez que viajavam juntos, o trapezista sonhava deitado
em seu porta-bagagens; o empresário do outro lado, reclinado
em seu banco, lia um livro, quando o artista dirigiu-se a ele em voz
baixa. Imediatamente abandonou a leitura dispensando-lhe toda a atenção.
E ele mordendo os lábios comunicou-lhe que no futuro queria exibir-se
em dois trapézios em vez de um só, devendo um ficar em
frente ao outro... acrescentou que nunca mais e em quaisquer circunstâncias
, apresentaria seu número em um só trapézio e só
a idéia de que aquilo pudesse acontecer, fê-lo estremecer.
“com uma só barra nas mãos... como posso continuar
vivendo...”
... e o empresário chegou a acreditar que podia
ver naquele sono aparentemente tranqüilo que sucedera ao acesso
de choro, as primeiras rugas de preocupação sulcadas na
testa lisa e infantil do trapezista...”
Trad: Syomara Cajado
O JEJUADOR
“...Sentia-se quase feliz ante a perspectiva de
passar uma noite em claro com aqueles observadores; estava sempre pronto
a corresponder às suas piadas, a contar-lhes histórias
de sua vida nômade, enfim qualquer coisa para mantê-los
acordados, demonstrando-lhes assim que em sua gaiola não havia
nenhum comestível, e que jejuava como nenhum deles podia fazer..”
Trad: Syomara Cajado
NA COLÔNIA PENAL
“ ....Muitas perguntas preocupavam o explorador,
mas ao olhar para aquele homem, limitou-se a perguntar:
- Ele tem conhecimento da sentença?
- Não – respondeu o oficial aflito por continuar sua exposição,
mas o outro o interrompeu.
- Não conhece a sentença que lhe foi imposta?
- Não – tornou a dizer o oficial e fez uma pausa como para
deixar o outro elaborar sua pergunta, e em seguida falou:
- Não haveria motivo para contar-lhe, ele a conhecerá
em seu próprio corpo...
...E assim durante doze horas repete-se este processo, e a inscrição
vai-se aprofundando cada vez mais na pele...
...Nesta ocasião a grade já o terá perfurado suficientemente,
atirando-o então para dentro da fossa, na qual permanecerá
caído por cima do sangue, da água e dos pedaços
de algodão. E assim tudo estará terminado e o soldado
e eu o enterramos...”
- Trad: Syomara Cajado
KAFKA
E "O PROCESSO"
Franz
Kafka começou a escrever O Processo (Der Prozess) na semana de
agosto de 1914. Pouco tempo antes, ele duvidava de qualquer empreendimento
literário novo, pois numa entrada dos Diários, de 6 de
agosto desse ano, afirmava ter perdido “para sempre” a capacidade
de dar livre curso à representação de sua vida
interior. Embora assinalasse, logo em seguida, que havia conseguido
escrever “quatro páginas, insignificância difícil
de superar”, o tom mudou muito no dia 15, quando anotou o seguinte:
“Estou escrevendo desde há alguns dias [...] Não
me sinto, hoje, tão protegido[...] pelo trabalho como há
dois anos, mas adiquiri um sentido – minha vida regular, vazia,
insensata de celibatário, tem uma justificativa”. A comparação
é com o ano de 1912, quando surgiram, em sucessão rápida,
O veredicto, A metamorfose e a maior parte do romance O desaparecido..
Por aí fica claro que o escritor estava empenhado num projeto
de envergadura. Seis meses mais tarde no entanto, - em 17 de janeiro
de 1915 – ele interrompia a escrita de O Processo , pois no dia
18 os diários registram que havia começado uma “nova
história” (provavelmente Blumfeld) temendo estragar as
“antigas”. Aliás ainda no dia 6 de janeiro de 1915,
ele se confessara quase incapaz de dar prosseguimento ao romance, afirmação
reiterada numa carta de 20 de março à nova Felice Bauer,
dizendo que já fazia dois meses que experimentava a impossibilidade
de realizar qualquer trabalho suportável.
Esses
dados não explicam mas informam, porque um dos maiores romances
deste século ficou sendo um fragmento.
Um dos tópicos recorrentes, da pesquisa em torno de O Processo
é o que diz respeito às suas fontes literárias
imediatas. Nesse contexto, há quem considere matrizes temáticas
da obra tanto peças do Teatro lídiche, (a que o escritor
assistiu no inverno de 1911-12), como alguns romances de Dostoiévisky.
Segundo um especialista, a cena seminal de O processo, - a detenção
do herói Josef K. – corresponde a uma sequência breve,
mas significativa, do vice-rei de Fayman: a prisão de don Sebastían.
Embora na peça o episódio seja muito sério, ele
aparece entrelaçado com elementos cômicos, manifesto nos
insultos que Pedrillo, criado de don Sebastían, profere contra
os agentes da detenção – dois servos mascarados,
a serviço da Inquisição, que vêm prender
o personagem por suspeitas de que ele seja judeu.
A comicidade
do capítulo primeiro de O processo, em que se narra a detenção
de K.é menos evidente, mas sabe-se que kafka riu até chorar
quando o leu, para os amigos precisando interromper a leitura, para
enxugar as lágrimas: para ele o cômico radicava no acúmulo
de minúcias.
Processo, lei,
aparelho judiciário e burocrático, são motivos
que atravessam a obra de Kafka. Ele soube tratá-los com precisão
técnica e terminológica, não só porque era
formado em direito, mas também porque atuou pessoalmente em numerosos
processos envolvendo a companhia semi estatal de seguros contra acidentes
de trabalho., da qual foi funcionário exemplar durante anos.
Acresce que- conforme demonstra sua correspondência- acompanhou
com interesse várias “causas momentosas” na época
de O processo, as quais, entre outras coisas, lhe proporcionaram uma
oportunidade para ver um pouco atrás da fachada de respeitabilidade
burguesa da sua cidade e de seu tempo.
Para citar alguns exemplos,
na primavera de 1910 ele refere à Max Brod , o processo de homicídio
movido contra uma condessa, que causou sensação em Praga;
Em novembro de 1912 envia, numa carta à noiva Felice Bauer, um
recorte de jornal sobre um “ processo monstruoso”; Numa
entrada dos diários, de julho de 1913, afirma ter soluçado
sobre o relato judicial de uma jovem de 23 anos que, premida pela miséria
e pela fome, estrangulou um filho de três anos com uma gravata
que lhe servia de liga. É provável, porém, que
a causa que mais inspirou no período em que concebia O processo
tenha sido a de um deputado de direita que, em março de 1914,
ao ser denunciado pela imprensa liberal como informante pago da polícia
secreta de Praga junto ao governo de Viena, apresentou queixa-crime
ao tribunal competente para se defender. O caso causou furor nos círculos
políticos e culturais na Boêmia; o deputado foi tão
pouco eficiente na defesa, que o público se convenceu da sua
culpa antes que viesse à luz o pronunciamento judicial exigido
por ele. Em audiências realizadas em maio, sua queixa foi rejeitada;
o veredicto decretou o declínio político e moral do acusado,
que acabou mudando de nome e caiu no esquecimento. Foi nessa ocasião
- poucos meses antes de iniciar O processo – que Kafka travou
conhecimento concreto com as tramas da polícia do Império,
com os procedimentos sinuosos da justiça criminal de seu país
e principalmente com a figura tragicômica do deputado, que se
viu arrastado contra a vontade à um processo cujo o desfecho
ele sabia de ante mão ser a sua ruína.
As interpretações
do romance, cujo o número, nas mais variadas vertentes (teológicas,
filosófica, sóciopolíticas, piscanilíticas,
estético-formais, etc), aumenta à medida que se amplia
a posição de Kafka como um clássico da literatura
universal. Por exemplo: Na linha teológico- existencial, há
um número bem numeroso de interpretes que vêem no romance
a representação da culpa do homem contemporâneo,
já que o livro não trata de um processo criminal que se
desenrole diante uma corte de justiça convencional. Outros ,
pela mão contrária, descartam qualquer viés alegórico
desse tipo e afirmam, baseados na história , que nada é
mais real (ou realista) que O processo, pois o entrecho reflete a desumanização
burocráti ca da Monarquia do Danúbio. Os que não
concordam com essa tese, entretanto, argumentam que a administração
austro-húngara, nada tinha em comum com as imagens de O processo,
além do que a avaliação da burocracia, feita pelo
Kafka funcionário público, não era a de um súdito
impotente diante de uma máquina impessoal e aniquiladora. Mas
há críticos que consideram de outra natureza o realismo
de kafka – para eles o escritor habilitado a oferecer, apartir
do seu ângulo específico de observação histórica,
uma visão estéticamente eficaz e nada metafísica
do que ainda estava por acontecer; Por isso, O processo pode ser concebido
como uma profecia do terror nazista, em que a detenção
imotivada, os comandos de espancamentos, as decisões incontrastáveis
das esferas de poder e o assassínio brutal faziam parte do cotidiano.
Seguindo uma linha análoga de raciocínio, que procura
pôr em evidência a lucidez de um autor “desengajado”
(e podado pelo Stalinismo) constam também da bibliografia análises
que percebem no romance o esforço bem – sucedido de mapear
por dentro a alienação encoberta do dia a dia através
das peripécias de K. pelas instâncias reificadas do mundo
administrado. Vistos desse ângulo, “protocolos herméticos”
como O processo desvendam a gênese social da esquizofrenia. Ou
então um universo sem esperanças de onde foi banido o
mito da salvação.
Já na vertente psicológica
ou psicanalítica o leitor encontra afirmações no
sentido de que a ação romanesca de O processo reflete
um caso de neurastenia, ou então que as desventuras objetivas
de K. são apenas um sonho quando não a imagem delirante
de um indivíduo entregue ao isolamento e à exaustão.
Uma vez porém que a história é narrada da perspectiva
do personagem, não faltam os que reconhecem, nos acontecimentos
do livro, ora um mundo de aparência, ora um mero “processos
de pensamento” de Josef K. O contraste entre essas teses dá
uma idéia do que ocorre na fortuna crítica do romance-
a tal ponto que sua plausível pretender, como fazem alguns estudiosos,
que questões relativas ao “sentido” da obra continuam
em aberto.
Certamente o motivo para tanta discrepância
nas interpretações de O processo, reside nos meandros
de uma prosa sutil. Pois a despeito do seu aspecto “conservador”,
ela marca um momento da maior complexidade no âmbito da ficção
universal. Tome-se como exemplo, a famosa frase com que se inicia o
romance (na tradução: “Alguém certamente
havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido ser te
feito mal algum”). Um exame superficial desta sentença
mostra que são conhecidas todas as regras sintáticas e
as palavras que, através dela, ordenam e objetivam seu conteúdo.
Mas para quem continua lendo a história, o sentido da ação
que se segue não é nem confirmado, nem revogado: é
simplismente posto em dúvida. Dito de outro modo, o que de início
está formulado de maneira válida, como consequência
de uma tese (detença por presumível calúnia ) ,
acaba se tornado algo totalmente incerto, com efeito, a lei que serve
de parâmetro para medir a culpa de K. permanece oculta, não
podendo patrocinar qualquer juízo ponderável sobra a conduta
do herói. Além disto no desdobramento da ação,
consta que as autoridades são” atraídas pela culpa”,
o que leva a supor que a detenção não precisa ser
resultado de uma calúnia. Acrecenta-se que a liberdade de movimentos
do protagonista, depois de alguns quiproquós, fica garantida
– o que faz a “detenção” deixar de ser
o que o começo do capítulo afirmava que era. É
por essa via kafquiana que o fato afirma do perde a credibilidade, sem
que seja oferecida ao leitor uma alternativa plausível. As coisas
pórém não param aí, porque Kafka concebia
a abertura da narrativa como um golpe de mestre, na medida em que ela
não só dá o tom do que é narrado, como também
baliza a lógica interna do relato. Não suspreende de que
o modo como a frase inaugural do romance se comporta diante da primeira
cena se repita, com maior ou menor carga de contraste, tanto em relação
às demais cenas do capítulo primeiro quanto aos restantes
que compõe o corpo da obra.
Um passo adiante é
por meio de representações conhecidas como inquerito,
cartórios, escritórios de advocacia que se vêem
incoporados no texto elementos convencionais da prática jurídica
– embora todos eles sejam postos em questão através
de detalhes que, no conjunto, descrevem uma linha ascendente de autodescrédito
e inverossimilhança: o inquérito, por exemplo, tem lugar
no quarto dos fundos de uma casa de cômodos miserável,
os cartórios estão instalados em mansardas infectas, o
advogado recebe clientes na cama etc- o que não impede que no
final, Josef K. seja executado, só que por dois carrascos vestidos
de sobrecasaca, gordo como tenores, que usam uma faca de açogueiro,
numa pedreira situada nos confins da cidade. Diante de tudo isso, a
postura racional do leitor , em princípio estimulada pelo teor
quase naturalista do texto, é incessantemente agredida por deslocamentos,
sem que a coesão interna do romance dê margem a dúvidas
sobre sua integridade enquanto expressão do pensamento organizado.
Se a pretensão de Kafka era fazer o leitor se sentir “
mareado em terra firme” (as palavras são suas), então
ele conseguiu o que queria escrevendo O processo.
"K" (1984)
“K”
absorve e manifesta ao público a essência do espírito
kafkiano, denunciando a situação do homem como vitima
de mecanismos estranhos criados pela sociedade. O personagem central
é inicialmente tratado como animal em fase de adestramento. Em
tal quadro, fica claro o triângulo edipiano que vai se repetir
sob outras formas e a presença da repressão que se inicia
a partir do berço, através da presença dos pais
que preparam o homem para o ridículo e complicado mundo social.
Uma vez integrado ao
contexto do faz de conta burocrático e cercado de pessoas nas
quais as anomalias parecem naturais, o personagem acaba devorando pela
máquina do absurdo, alimentando-se de documentos e diplomas tão
desnecessários. Entre uma fuga e outra, ele sonha com a magia
da liberdade total e acaba novamente prisioneiro entre as paredes da
fria e inevitável realidade, vitima da violência do próprio
sistema. A temática e atualíssima, mais do que nunca enfrentamos
os obstáculos de ordem social, política e burocrática,
graças aos quais todo um povo se decepcionam, frustrado em suas
esperanças mais legitimas. O elenco está homogêneo
e a presença dos músicos como integrantes do cenário
dá ao espetáculo um visual agradável e onírico.
É um trabalho sério de jovens vanguardistas que anseiam
rasgar fronteiras rumo à totalidade e à comunhão
das artes.